TL;DR (ou, versão expressa)
Andou circulando uma notícia de que Vincent Cerf, considerado o “pai da internet”, sugeriu que as pessoas deveriam guardar suas fotos digitais em papel para evitar uma Era das Trevas Digital.
O fato é que Cerf jamais deu esta idéia inútil e inviável, o que deixa claro o quanto o jornalismo anda tão apressado e descuidado quanto as pessoas que compartilham tudo em redes sociais sem a devida atenção e senso crítico.
Neste longo texto, aponto alguns problemas e refuto informações deste caso, e defendo que fãs de fotografia e fotógrafos dogmáticos quanto à fotografia em papel devem agarrar o boi pelo chifre e abraçar as tecnologias digitais, se estiverem realmente interessados em preservar a arte fotográfica e nossa memória visual.
Se está sem tempo (ou energia) para ler o texto inteiro, clique nos links abaixo para ir aos pontos mais importantes.
Aviso aos leitores, fotógrafos, amantes da fotografia e, especialmente, aos jornalistas que replicaram a notícia que dizia que o “Pai da Internet”, Vincent Cerf, tinha sugerido que as pessoas guardassem fotografias em papel: não, ele não sugeriu isto!
O problema que ele levanta, na verdade, é que existe um sério risco de perdermos boa parte da história humana, hoje armazenada digitalmente. O problema é real, mas não tem nada a ver com imprimir as fotografias em papel.
O assunto é especialmente importante para mim pois adoro fotografia, e as mudanças que estamos fazendo no site Fotografia Diária lidam justamente com a necessidade de preservar a nossa memória fotográfica – as fotografias, a história da arte fotográfica e o legado dos fotógrafos – de forma digital.
Existem vários problemas com esta notícia e com a sua propagação pela rede digital. Vou apresentar alguns, junto com minha opinião e possíveis soluções.
Você pode ler os artigos em inglês na BBC e The Guardian e ver o vídeo do próprio Vincent Cerf falando sobre o assunto, para se assegurar que ele não disse nada disto. Aliás, o próprio artigo com a manchete Caça-Clique desmente a informação:
“Cerf tem uma proposta para resolver o problema: a criação de um museu na nuvem que preserve digitalmente as características de cada software e hardware, para que mesmo que uma tecnologia se torne obsoleta, seus arquivos ainda possam ser acessados.”
Ao que a redatora afirma o que considera ser uma possibilidade de solução: “Enquanto essa questão não é resolvida, pode ser melhor você começar a imprimir suas fotos e arquivos mais importantes.”
Primeiro problema: jornalismo apressado
Jornalismo apressado distorce fatos, transforma opinião em fato e desinforma. E isto, claro, é prejudicial.
Este eu vou ser rápido:
- a informação não foi checada adequadamente;
- o que foi dito por Cerf não foi entendido adequadamente;
- a opinião da redatora virou verdade na manchete;
- a informação não dá o contexto adequado. Cerf fala de informações em geral, incluindo vídeos, programas, documentos, música, etc., não apenas fotografia.
E aí, o que aconteceu? Diversos portais e sites reproduziram a matéria como verdade absoluta. E falharam
Das matérias que vi, quem se saiu melhor foi a revista FHOX que, embora tenha cometido o mesmo erro, de não checar a informação original, aproveitou para fazer um artigo, muito além do Copiar/Colar como quase todos os outros sites fizeram, mostrando os múltiplos contextos de uso da foto em papel, que é uma das bandeiras que a revista costuma levantar. É proselitismo? É, mas não vejo problema em proselitismo às claras, transparente.
Segundo problema: falta atenção e senso crítico
Se as pessoas não atentam erros simples como estes, como esperar que exerçam senso crítico em assuntos como política?
Estas falhas passaram batido por todo mundo que repercutiu o assunto. Provavelmente, muitos compartilharam sem ler. Imagine como é quando isso acontece com assuntos polêmicos como política, direitos civis, etc.
Sejamos mais cuidadosos com o que compartilhamos, checando as fontes, confrontando as informações e exercendo o senso crítico. Sejamos ainda mais exigentes com veículos e pessoas que fazem (ou dizem fazer) jornalismo.
Terceiro problema: o papel não é uma forma tão segura de registro
Uma verdade dura, mas é com amor: não existe forma de armazenamento de informação 100% segura e infinitamente duradoura. E o papel é uma das mais formas mais frágeis de registro.
Por mais que gostemos de papel e que existam fotos, documentos, livros e afins com décadas, séculos, e até milênios de idade, o material é muito frágil e perde informação rapidamente se não for devidamente conservado. “Oi, fagulhas. Oi, água e umidade. Oi, poeira, traças e ácaros. Oi, corroção e decadência pelo desprendimento de aditivos e vernizes. Oi, um monte de coisa.” O pessoal da Biblioteca de Alexandria ou William of Baskerville, personagem de O Nome da Rosa, que o digam.
Não se nega a importância do papel, ponto. Mas se algo em papel é realmente importante, então vale a pena ser redundante e fazer cópias em outros meios. Quanto mais, melhor.
“A solução é tirar um instantâneo digital, um raio-x, do conteúdo, da aplicações e do sistema operacional tudo junto.” (Vincent Cerf)
O inverso também é verdade. Se algo digital é importante, faça cópias em outras mídias como mídia ótica (DVD, BluRay), magnética (HD externo, por exemplo) e/ou coloque “na nuvem”.
Considere também ter seus arquivos em dois formatos para que programas diferentes possam ler. Prefira padrões abertos (open-source) ou ao menos serviços e softwares que leiam múltiplos formatos, justamente para diminuir o risco que Vicent Cerf alerta: que nossos dados não possam ser lidos no futuro por problemas como o suporte físico, ou a a indisponibilidade de equipamentos adequados.
Aliás, a questão levantada pelo Cerf se concentra nisto: em preservarmos os dados e também os programas que são usados hoje, para que no futuro as informações possam ser acessadas e não se percam.
De fato, Cerf sugere uma solução bem distante do papel: “a solução é tirar um instantâneo digital, um raio-x, do conteúdo, da aplicações e do sistema operacional tudo junto, com uma descrição da máquina onde eles rodam, e preservar isto por longos períodos de tempo. E este instantâneo digital vai nos permitir recriar o passado, no futuro.”
Para usar de uma analogia: sabe aquele vinil velho, guardado em algum lugar da casa de sua bisavó, que você não tem como ouvir? Pois é. Sorte que o vinil está sendo revivido e há novos aparelhos para tocar discos velhos.
Agora, pense na quantidade enorme de gravações musicais em arame ou fita que se perdeu ou se perderá por não haver equipamentos paratocá-las. Pense na quantidade de informações, conhecimento e sabedoria que se perdeu no já citado incêndio da Biblioteca de Alexandria. Ou em pergaminhos escritos em línguas mortas,perdidos simplesmente por que o hardware e o software, no caso,seres humanos que dominavam tais línguas, não existem mais.
Quarto problema: uma solução inútil e inviável
Armazenar em papel as fotografias disponíveis hoje digitalmente não soluciona o problema e é inviável do ponto de vista técnico, financeiro e ambiental.
Substituir as informações digitais por equivalentes em papel (ou fita cassete para música e VHS para vídeos) seria inútil e inviável.
Pense em imprimir todas as fotos que você fez no smartphone só neste começo de 2015 e tente estimar o custo e espaço necessário para guardá-las, além de como seria o uso destas fotos no cotidiano. Se estiver a fim de gastar dinheiro, entulhar seus armários e acabar com o meio-ambiente, vá lá e realmente imprima.
Inviável e inútil num nível que é até cômico. Aliás, o Google já até fez piada e pegadinha de 1.o de Abril com este assunto, como quando anunciou que todo conteúdo do YouTube estaria disponível para compra em DVD ou que Gmail teria um dispositivo chamado Gmail Paper, que possibilitaria aos usuários enviar todas mensagens eletrônicas para o Google, onde elas seriam impressas e envidas de volta pelo correio!
Qualquer pessoa que tentou imprimir várias cópias de uma fotografia sabe quão trabalhoso e custoso isso é. Especialmente se forem revelações manuais e artísticas. E em reproduções, ao se fazer cópias a partir de uma matriz em papel, seja por xerox, foto da foto, ou digitalização, há perda de qualidade.
Além disso, o tamanho do espaço físico que um fotógrafo profissional, com um acervo de tamanho razoável, precisa para armazenar de forma organizada todo seu material, é enorme.
Transponha esse desafio para galerias de arte, museus e outras instituições culturais, e terá um problema ainda maior. Não apenas é necessário um grande espaço físico para armazenar as fotos como fica difícil preservar ou restaurar fotos que não sejam digitalizadas.
E ainda há a questão de catalogação, que em muitos lugares ainda é feito em cartões de papel ou, na melhor das hipóteses, catalogadas num computador solitário ou em rede local. Talvez até na nuvem, mas certamente em programas e plataformas proprietárias e fechadas, sem comunicação entre seus vários sistemas (de ERP, de CRM, site, ecommerce, editoração de catálogo, etc.).
Uma matriz em arquivo digital permite a reprodução fácil do seu conteúdo em diversos suportes (papel fotográfico, papel offset, lona, qualquer coisa!) com facilidade e rapidez. E utilizar tecnologias e práticas padronizadas – de preferência abertos, open source e na nuvem – permite que diferentes sistemas compartilhem informações de forma ágil, levando à produtividade e tornando mais fácil divulgar fotose criar novos serviços que irão beneficiar os envolvidos na fotografia: fotógrafos, produtores, divulgadores, comerciantes, fãs e a sociedade em geral, já que sua história e seus conhecimentos serão preservados.
Quinto problema: direitos autorais, memória coletiva e negócios
É preciso repensar a dinâmica entre direitos autorais e usos coletivos de conhecimento e arte. Em paralelo, a tecnologia que permite cópia rápida de uma obra artística ou intelectual, deve facilitar a geração de valor aos autores.
Este é um assunto polêmico e que deve ser tratado de forma muito mais profunda que estes parágrafos.
Tenho sentimentos muito ambivalentes quando vejo notícias como a descoberta de Vivian Maier (uma babá americana apaixonada por fotografia cuja arte só foi descoberta recentemente, anos depois de sua morte, por acaso) ou a recuperação do acervo perdido de alguém que foi encontrado, acervos históricos poucos conhecidos que se tornam livros ou exposições e casos assim.
Por um lado, fico contente que tais descobertas sejam trazidas à luz. Por outro, penso em quantos trabalhos incríveis já foram perdidos e o quanto, certamente, outros se perderão, mesmo de fotógrafos contemporâneos, por estarem em papel ou catalogados e digitalizados de forma inadequada, ou ainda, perdidos em um DVD ou HD. Quantos gênios da fotografia deixaram e deixarão de ser conhecidos?
Basicamente, temos duas forças opostas: o respeito aos direitos do autor e a necessidade de preservação da memória coletiva, que precisam se equilibrar tanto no âmbito legal quando no tecnológico e cultural.
Pessoalmente, sou contra tecnologias DRM (Digital Rights Management – Gerenciamento de Direitos Autorais) radicais, pois além de saber que alguém sempre vai dar um jeito de burlar, iguala todos os usuários a criminosos. Tenho visto casos de fotógrafos bem sucedidos quando são mais flexíveis quanto ao uso de suas fotografias, especialmente no que concerne a fins não comerciais. Da mesma forma, cada vez mais vejo exemplos de ecossistemas de negócios cujo sucesso é baseado em:
- na abundância, não na escassez, indo na contramão dos negócios como precognizado pelo capitalismo até aqui.
- na crença de que num mundo permeado pelo digital, o conceito da cauda longa é lei e o sucesso virá ao “trocar os dólares do analógico pelos centavos do digital“.
Não vou entrar em detalhes nos conceitos de cauda longa e dos centavos digitais, pois existem livros que explicam muito melhor que eu jamais vou explicar, até em quadrinhos. Mas há dois casos de sucesso mundiais que você provavelmente conhece: Amazon e WordPress.
Só para colocar o dedinho do pé na água, número de autores pequenos ou independentes que a Amazon permitiu que encontrassem seu público e vendessem livros, fotolivros, livros digitais e etc é enorme. O número de pessoas, artistas e empresas que puderam publicar blogs e sites a preço baixo, ou mesmo de graça, e aumentar seu alcance e número de negócios também. E também existem milhares de negócios atrelados a estas plataformas: de sites que facilitam a criação e disponibilização de livros digitais na Amazon a aplicativos alternativos para leituras de livros digitais e serviços de e-commerce baseadas em wordpress a preços acessíveis, entre outros.
Um caso prático em que minha empresa está envolvida é do banco de imagens Fotografias Aéreas, do fotógrafo brasileiro Cássio Vasconcellos, que já tem alguns milhares de fotos aéreas online no site. Estas imagens não representam 1% do acervo de fotos aéreas do fotógrafo, certamente o maior acervo deste tipo de fotos do Brasil, muitas impressas ou apenas em filme. Seria uma pena que um acervo deste porte se perdesse.
Minha empresa está auxiliando Cássio Vasconcellos no trabalho de catalogar e levar este conteúdo para a nuvem, mas ainda falta muito a ser feito. Ao aumentar a disponibilidade de seu catálogo comercial online (algumas em Creative Commons, que permitem o uso gratuito para fins não-comerciais), o fotógrafo passou a ser conhecido por mais pessoas e fortaleceu seu nome como autoridade em fotos aéreas, o que reflete tanto em seu trabalho comercial, quanto na demanda por suas obras autorais.
Por um lado, faz-se necessário que tanto os fotógrafos quando as legislações sejam mais flexíveis, também é preciso fazer que a mesma tecnologia que permite o compartilhamento fácil fotografias traga benefícios aos autores destas fotos.
Sexto problema: a relação dogmática com a fotografia em papel
A fotografia em papel é uma experiência rica, mas não é a única experiência possível ou válida da fotografia como arte ou memória e é necessário uma postura menos dogmática se queremos uma fotografia universal, rica e duradoura.
Infelizmente, muitos fotógrafos e amantes da fotografia se relacionam com a fotografia em papel de forma dogmática e adotam uma postura algo fetichista, rechaçando qualquer coisa que não seja analógica e deixando de ver aspectos positivos da fotografia digital e limitações da fotografia em papel, talvez até dificultando tanto fomento do “consumo” da fotografia e de novos artistas, como a preservação de nossa memória coletiva.
Não me entendam mal, mas acho que a fotografia em suportes físicos não precisa de defesa. Ao menos não esta linha de defesa. A beleza das fotos impressas, a experiência multissensorial que é um fotolivro, por exemplo, são defesas mais que suficiente para se desejar fotos impressas. Eu mesmo, apesar de ter alergia severa a papel velho, coleciono fotografias e tenho um bom acervo de fotolivros. Aliás, dois dos trabalhos que mais me tocaram em 2015 são fotolivros lindos e artesanais.
Acho, sim, que lugar de fotografia é na parede. E no livro. E também no bolso, pois a fotografia cabe em qualquer lugar.
Mas para a fotografia ser universal, ter chances reais de preservação e ainda gerar valor para todas as pontas, é importante que fãs e fotógrafo encarem esta não tão nova era digital de frente e abram a mente para suas virtudes, assim como não fechem os olhos para os limites do papel.